#33 - O problema da pirataria
"Nem todos os homens são tão maus como parecem, mas alguns são piores do que se pode imaginar." A Ilha do Tesouro
Quando criança eu brincava muito de faz de conta. Aquela turminha da minha rua eram tudo o que podiam imaginar. Jogadores da seleção, detetives, aventureiros, super-heróis… Eu queria ser pirata. O sol no rosto, o vento nas velas e o mar no horizonte.
Mais do que um pirata, eu queria ter o maior navio de todos, com aqueles canhões enormes que cuspiriam fogo contra os barcos inimigos. Eu queria a liberdade de ir pra qualquer lugar, de desafiar qualquer um, de não ter de obedecer ninguém.
Conforme fiquei mais velho pude estudar melhor sobre os ladrões mais famosos da história. Sobre o “Vingança da Rainha Anna”, o mais famoso navio pirata e sobre o homem que aterrorizou os oceanos. Quando brincava de faz de conta, eu queria ser Barba Negra.
Mar Egeu, Litoral da Grécia, 75 anos antes de Cristo.
O então cônsul romano Júlio César viajava de barco pelo mar a caminho da Ilha de Rodes, onde iria estudar. Seu navio foi interceptado por piratas, que o sequestraram e o mantiveram como refém por quase 40 dias. Os bandidos exigiram um resgate de 20 talentos de ouro. César negou: alguém tão importante quanto ele valia pelo menos 50 talentos. Os piratas, convencidos, aumentaram o preço do resgate.
César, sempre brincalhão e arrogante participava de jogos de azar, comia, sorria e desafiava a autoridade de toda a tripulação. Em alguns de seus “rompantes” dizia que mataria os piratas. Todos gargalhavam. Trinta e oito dias após ter sido capturado, os companheiros de César trouxeram o dinheiro, comprando sua liberdade. O cônsul chegou em terra e seguiu seu caminho. Poucos dias depois retornou, encontrando o navio pirata atracado no mesmo lugar. Agora, acompanhado de seus próprios carrascos, fez com que todos os piratas fossem crucificados.
Lidisfarne, Inglaterra, Litoral Sudoeste do Mar do Norte, 793 depois de Cristo.
O monge acordou cedo, como qualquer outro dia. Ajoelhado ao pé da cama, fez suas orações antes de deixar o seu catre. Após a higiene, desceu as escadas para se juntar aos irmãos no desjejum. Aquele era um dia particularmente frio, apesar do céu ensolarado. Lá embaixo, as ondas avançavam contra o litoral, naquele balançar preguiçoso do mar.
Enquanto passava pelas janelas, o monge notou pontos escuros no horizonte. Silhuetas pontiagudas que se aproximavam da praia, assim como as ondas. Assustado, correu escadarias abaixo gritando em alerta. Os demais logo se juntaram a ele do lado de fora do mosteiro, o lado que dava para aquela imensidão azul. Aquelas formas escuras, agora mais perto, não deixavam dúvida: eram dracares vikings, provavelmente vindos da Noruega. Sua chegada significava apenas uma coisa: o mosteiro estava sob ataque pirata.
Oeste da África, Costa do Ouro, 1516 depois de Cristo.
Portugal foi, provavelmente, o país com maior destaque nas Grandes Navegações. A criação de um rota alternativa para as Índias Orientais, expedições marítimas para as Américas, embarcações com poderio militar suficiente para subjugar diversas fortalezas. E nem eles ficaram imunes. Muito antes do “descobrimento” da Terra de Vera Cruz, navios portugueses estavam em trânsito constante nos mares da Europa, África, América e do Oriente.
No século XVI, navios da marinha portuguesa foram atacados por corsários na costa do que hoje chamamos de Gana. Os piratas eram financiados pela coroa francesa, cujo maior objetivo era enfraquecer o monopólio ibérico. O saque visava as mercadorias que os lusitanos carregavam: ouro, escravos e uma madeira de cor avermelhada extraída daquelas terras além do oceano.
Pirataria é uma atividade muito, muito antiga. Mais do que a internet, mais do que qualquer sistema político ou financeiro, mais do que alguns países com toda sua cultura e tradição.
A pergunta que me faço ao ver tais relatos não é “De quem é a culpa?”, mas sim, “Por que uma pessoa roubaria de outra?”. A resposta? Porque ela pode.
Calma, suba a bordo que temos muito a navegar.
Em 2023, a Receita Federal apreendeu e destruiu mais de 5 mil toneladas de cigarros ilegais¹. Segundo estimativas, quatro em cada dez cigarros no país são falsos, contrabandeados principalmente da América Latina, em especial do Paraguai (que já é bem famoso por produtos falsificados).
Você é velho o suficiente pra lembrar de quando não tínhamos streaming? Será que já viu um DVD ou Vídeo K7? Bom, segundo a Folha de São Paulo, em 2005 , quase 10% dos CDs piratas do mundo eram brasileiros². E não eram só filmes. Álbuns musicais e videogames também eram copiados e comercializados de forma ilegal. Muitas locadoras (saudades Blockbuster) tinham seus estoques repletos de cópias falsas, incluindo filmes que ainda estavam em cartaz nos cinemas.
O “Boom” da internet não dificultou as coisas. Muito pelo contrário. A pirataria nunca foi tão próspera. No começo dos anos 2000, além do MSN e Orkut, alguns dos programas mais populares eram o Nero (usado para gravar arquivos em CDs, tanto de áudio como de vídeo) e, um dos meus favoritos, o Ares Galaxy.
O Ares era um software mágico. A tecnologia P2P (peer-to-peer) permitia que você pesquisasse o nome do arquivo que você queria (geralmente eram músicas) e solicitasse o envio desse arquivo para outro usuário do Ares. O envio era direto, enquanto o usuário emissor permitisse o “seed” do arquivo. Evitava a burocracia de ter que entrar em sites de armazenamento como o Mega, o DropBox ou o 4Shared (lembra dele?).
Depois do Ares, os softwares de Torrent se tornaram ainda mais populares, permitindo que o usuário tivesse acesso a qualquer arquivo através do código “Magnet Link”. A pirataria digital passou então a ser uma comunidade. Centenas de milhares de pessoas compartilhando mídias sem sequer precisarem se conhecer, sem nunca terem se visto, unidas apenas por uma conexão de banda larga e um gosto ou interesse comum. Não levou muito tempo até que todo esse público “demandasse” um espaço próprio. Foi dessa necessidade que surgiu o mais famoso site de pirataria da história: The Pirate Bay.
O “Baía Pirata” já foi derrubado várias vezes. Tanto empresários quanto artistas nutrem um ódio especial pelo website que divulga software e mídia sem dar o menor crédito e, pior, o menor lucro para os criadores do conteúdo. Não passa muito tempo até que o Pirate Bay volte à ativa. E ele sempre volta.
Como você já viu, não se importa se a mídia é digital ou física. Não faz diferença se o carregamento é de comida, tecido, madeira, ouro, prata ou vidas humanas. Se algo tem valor, vai ser alvo da cobiça e estará sujeito a ser roubado.
Porém, embora o “furto” seja injustificável, ele ainda pode ser explicado e, em certos casos, perdoado. Para alguns vai depender de quem foi pirateado. Tudo bem piratear “a escrota da JK Rowling” ou o criminoso do Neil Gailman ou o esquisito do Stephen King. Eles são milionários, não vai fazer falta. Mas se o critério for “quando o autor é mais rico que eu, tudo bem” então vai ter muita gente pirateando a Socorro Acioli, a Carla Madeira e o Itamar Vieira Jr, já que milhões de pessoas nesse país são mais pobre que eles.
Para outros, vai depender do valor daquilo que foi roubado. Entretanto, embora exista um valor monetário, o valor intrínseco é bem maior. E todo aquele tempo gasto, todas as horas de pesquisa, todas as madrugadas, as dores de cabeça, a tendinite? Tudo isso está condensado numa obra que, só pelo esforço, deveria custar dez vezes mais. Contudo, nossos amigos “piratas”, e eu me incluo nessa, também consideram o valor intrínseco da obra e colocam-no na balança contra o seu próprio valor. E o valor próprio sempre vence.
Nós, como escritores, obviamente sentimos uma dor maior quando a pirataria atinge o mercado literário. Mas os produtos mais pirateados estão no mercado de softwares e mídias digitais. Usar um Windows ou um Microsoft Office sem licença. Compartilhar com um amigo a senha da Netflix, da Amazon Prime, do Disney Plus, da Hotmart… Todos exemplos de pirataria.
Talvez o mais correto fosse aprender a usar o Linux, ao invés de piratear o Windows³ ou esperar ter dinheiro no bolso pra pagar pelo serviço de streaming ou economizar alguns meses para comprar o livro didático ou literário. Seria o mais correto, se não fosse por um problema: o tempo.
Algumas soluções demoram. Se você é pobre, elas demoram dez vezes mais. Quando o dinheiro é escasso e você está trabalhando dobrado pra sobreviver, qualquer outro esforço deve ser eliminado ou reduzido. Com tantas barreiras já impostas pela falta de grana, qualquer “PayWall”, “language barrier” ou “Close Friends” deixa de ser visto como privilégio, passa a ser visto como segregação. Porque eu deveria vestir menos, comer menos, fazer menos, saber menos ou “ser menos” que os outros? Se uma barreira me parece injusta, burlá-la passa a ser uma forma de “justiça”.
A pirataria torna-se uma possibilidade ao reduzir as exigências para que uma pessoa adquira algo que queira ou precisa. Duas percepções que sempre se confundem. Na grande maioria dos casos, quem pirateia um produto não precisa dele. Mas quer muito obtê-lo.
Por que alguém sem dinheiro compraria uma bolsa falsa Louis Vitton? Ou um tênis Nike que custa um terço do preço do verdadeiro? Por que leria um PDF de um novo romance quando tem dezenas de cópias com capa dura na estante da livraria? Pelo status.
Porque assim podemos parecer mais ricos, mais poderosos, mais cultos do que somos. Porque assim podemos ser considerados mais interessantes, mais dignos de atenção e mais valorizados, mesmo quando não damos valor pra ninguém além de nós mesmos. Nosso problema não é o dinheiro, é o ego. O dinheiro é só mais uma forma de externalizá-lo. Ou você acha que os homens das cavernas não mataram uns aos outros por uma caverna com piscina e quadra de tênis?
Por que temos tantos políticos corruptos, empresários condenados, gangues de assaltantes? Por que desde o início dos tempos cultuamos Loki (deus da trapaça), Hermes (deus dos ladrões), Anansi (deus da mentira)? Porque não há maior massagem no ego que subjugar alguém maior ou mais forte. Melhor ainda se não houver esforço, já que o trabalho físico sempre vai ser visto como mais difícil que o intelectual.
Quando alguém consegue enganar o outro com um pouco de esforço, ele é glorificado. O ladrão que rouba as galinhas sempre é visto como mais inteligente e mais habilidoso que o fazendeiro que acorda todo dia antes do nascer do sol pra cuidar da terra e dos animais (embora não seja).
A solução, pelo que me parece, passa pela definição do que é necessidade e do que é desejo. Uma mãe que rouba comida para alimentar os filhos, um estudante que “empresta” material didático, um doente que compra um remédio, “na loja da esquina”, por ser mais barato não deveriam ser punidos com extremo rigor. Muito diferente de quem é movido pela inveja, pela vingança ou por uma simples curiosidade sobre o casal principal. Sua birra não vale o trabalho dos outros.
São lições que eu não espero que sejam ensinadas nas salas de aula e não ponho nenhuma esperança no Governo. O Estado contrata piratas profissionais desde a época dos corsários. O engraçado é que, no Brasil, a cidade com maior número deles não tem tráfego de navios.
Contudo, mesmo com famílias que eduquem muito bem seus membros, não há garantia de que a pirataria vá acabar. Mesmo que eliminemos a fome, a sede, o analfabetismo, as doenças… Algumas pessoas vão continuar a fazer, só pelo esporte, só pelo status. “O homem é o lobo do homem”, já dizia Thomas Hobbes. Não é o ambiente ruim que corrompe quem nasceu bom. Todos nascem maus e, consequentemente, levam corrupção aonde quer que estejam.
Se um imperador romano foi vítima, o que será de nós, meros mortais? Se a sociedade fosse um oceano, a existência de predadores não seria culpa da água ou das correntes marítimas, seria dos peixes. A única escapatória possível é viver num aquário: protegido, isolado e preso.
Se você quer proteger seu tesouro, entrerre-o numa cova bem funda. Mas se você quer que o encontrem, basta desenhar um “X” no mapa e esperar. Não há ilha nos Sete Mares que fique a salvo.
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1111200502.html)
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